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Sobre o Japão a partir dos quadros de Mário Vitória

Imagens no meio dos quadros de Mário Vitória (obra institucional Tokyo 2020). Pintura e Japão. Japão e pintura.

1.
Os biombos japoneses são formas de tapar e anunciar.

De súbito, uma parede móvel que ali está, não para existir, mas para anunciar o que está por trás. Não é muro e daí vem a sua diferença absoluta. Não é para impedir a passagem física, é para impedir um itinerário óptico. O olhar vai no seu caminho e a meio é interrompido. Um biombo.

Uma espécie de véu, portanto: esse impedimento de ver é o início de um erotismo evidente. O biombo como aquilo que eu posso desviar com as mãos, tal como o véu por cima do corpo da mulher ou à frente do seu rosto.

O biombo como uma armadura, não para balas ou lâmina, mas para a simples ansiedade. Uma armadura elegantíssima, leve, trans- portada facilmente por donzelas de braços alvíssimos e frágeis.

O biombo num espaço obriga também a uma nova circulação, a desvios permanentes; e três biombos num espaço constroem uma micro-cidade com cruzamentos e opções sucessivas exigidas ao caminhante de pequena escala que é o ocupante de uma casa.

A leveza que tapa, a leveza que tapando diz: atrás de mim está o importante. O biombo.

2.
O monte Fuji ali está como repto atirado, desde há muito, aos pintores: estou parado, vê se me consegues captar. O monte Fuji como aquilo que foge ao pintor e à máquina fotográfica ou de filmar.

Não é como um objecto: uma montanha é instável como uma nuvem que tivesse ganhado peso. E, subitamente, o que parece estável torna-se resistência ao movimento.

Uma montanha não está parada, está constantemente nesse movi- mento de resistência ao movimento explícito que muda a posição das coisas. Diga-se, desde já: a força que é necessária para ter
a imobilidade do Monte Fuji! Quem consegue estar assim parado?! Uma força atirada para o tempo e não para o espaço; uma intensi- dade: uma acumulação. O Monte Fuji.

3.
A árvore Gingko Biloba resiste a tudo o que o homem pode produzir. O homem não produz tempo, ainda não. Tudo o que faz é atirado para o exterior, para os metros quadrados de utilidade. E mesmo quando faz elementos invisíveis, a fábrica humana esbarra nessa incapacidade: nenhuma fábrica ou laboratório até hoje produziu tempo.

A árvore Gingko Biloba é uma manifestação em árvore do tempo. Mede o tempo pela Gingko, não pelo relógio. Abre a janela e vê. A árvore Gingko Biloba.

4.
Os Yokai. Seres que estão debaixo dos pés para nos causarem medo e para virarmos a cabeça para cima; seres que estão abaixo das nuvens para nos causarem medo e para nos obrigarem a olhar para baixo. E, por vezes, um homem avança e tem acima de si e abaixo de si esses seres com formas colapsadas, formas que não parecem ter inicio nem fim, apenas meio; formas monstruosas que, no fundo, são isto: são apenas meio, uma matéria central que tem fome e necessidades e raiva e desejo. Não conhecemos taxi- nomias que as prendam a essas formas; não sabemos onde começa a sua narrativa e onde termina. Porque um corpo é uma narrativa, uma história – enquanto um monstro, um ser que conhecemos em parte e que em parte nos é estranho, não é uma narrativa, não tem o era uma vez inicial nem o fim do seu corpo; é um fragmento, o yokai, apenas um fragmento; e por isso temos medo: porque tudo o que é apenas meio é impossível de domesticar. Domesticamos algo quando dominamos o seu início ou o seu fim. O monstruoso é indomesticável.

Deixem-me dizer que vejo novos Yokai nos céus japoneses e não só. Yokai, seres estranhos, misteriosos, por vezes assustadores, que já não são apenas misturas evidentes de seres já existentes – animais, plantas e até deuses (que existem há muitíssimo, existem desde que acreditamos neles). O misterioso não pode vir apenas do que já existe.

Pois, sim, mas aí estão esses novos seres: as máquinas, essas que também não existiram antes de crermos nelas, antes de as fazermos, antes de colocarmos em movimento raciocínios complexos e matérias que mudaram de forma, textura e inteligência. No fundo, estes novos seres, as máquinas, são matérias que já existiam, mas agora combinadas de forma diferente e são, sim, seres dotados de uma outra inteligência. Ensinámos os materiais a pensar, eis o que é um computador; a consequência de um longo trajecto de aprendi- zagem e ensino: como pudeste colocar o metal a pensar? O lítio a pensar? O silício a pensar? Como é possível que as substâncias da tabela periódica, que Mendeleev colocou no mundo, estejam agora infiltradas, por exemplo, dessa enorme capacidade de memória que existe em muitas máquinas feitas da combinação de aparentes elementos estúpidos da tabela periódica? Quem ensinou os elemen- tos periódicos a pensar e a memorizar, a induzir e a analisar? Quem fez esse pecado de transferência de capacidades entre espécies do mundo?

E é isso, vejo os futuros monstros assim: metade máquina, metade cão; metade cavalo ou tartaruga, metade sensor elétrico automático. As máquinas, e o que resta delas, quando misturadas com coisas antigas são os novos monstros. Os novos Yokai.

5.
O Samurai como portador de um único golpe que guarda para o momento certo. Um golpe terrível que destruiria em definitivo algo de essencial. O samurai então como um fluxo, não de força ou violência ou capacidade guerreira, mas de contenção. Alguém que tem um grande poder – um golpe absoluto – e sabe que o tem, mas não o usa.

Talvez possamos pensar que esse golpe único que o samurai guarda e não usa, não apenas cortará algo de essencial e definitivo do mundo exterior, mas também algo nele próprio. Usar esse golpe secreto e potente seria também acabar consigo próprio. E assim, esse golpe, o torna ainda mais poderoso. Ele sabe que pode usar um golpe, um gesto, um movimento apenas uma vez e que, com ele, morreria. E, por isso, fará do uso desse golpe um acto também de sacrifício.

Pensar no samurai como aquele que é capaz de, no limite, se sacrificar. Uma grande potência que ali está, ao nosso lado, sentado na cadeira; aparentemente um humano como nós, mas não. É um Samurai.

6.
As portas japonesas são leves fisicamente, todo o seu peso é psicológico, social e simbólico. Pode a leveza ter muitos séculos e milénios? Pode, pode.

O leve é aquilo que apenas começa e se pode transportar, mudar de posição.

Como mudar de localização as tradições? Transportar as tradições atrás das costas como se as tradições fossem matéria exterior ao humano e, em parte sim, são exteriores, mas em parte não.

Como se transportam, afinal, as tradições? Por vezes assim, com leveza, nada nas costas: por exemplo porque um avô diz um segredo ao seu neto. E vejam: ali vai o menino levando as tradições para o novo dia. E vai leve. As portas japonesas? A tradição leve.

7.
Pensar nas gueixas e nesse movimento uniformemente leve: avançar na rua, mas quase sem passo. Como se o corpo feminino ganhasse novos membros, uma forma silenciosa de não levantar os pés; como se, no fundo, o solo fosse deslizante, é isso que parece acontecer: a forma de andar, de tocar no solo, transforma o próprio material debaixo dos pés. Desaparece o atrito, as pequenas irregularidades: o chão deixa de resistir ao humano (e o chão prova- va, com essa resistência, que era de outro mundo, de outro material, que tinha outros objectivos que não os dos humanos). Sem resis- tência ao andar da gueixa, o solo torna-se fraterno, como se fosse feito da mesma matéria que o humano.

8.
Como podes alterar as coisas? Martelando nelas ou atirando contra elas fogo ou água, ou deixando ainda que o tempo malvado as desfaça. Mas, de novo, a mesma pergunta: como alteras as coisas? Assim também: recusando pegar em qualquer instrumento, ferra- menta, objecto e lidando com as coisas directamente e apenas com a fisiologia máxima e mínima do humano; e, acima de tudo, colocando nos movimentos essa característica que está para além da Física e das suas variáveis – Velocidade, Massa, Aceleração, etc.; e essa característica é a delicadeza.

Pensar numa unidade de medida para a Delicadeza tal como existe uma para a Resistência e uma para a Força

Em Física normal
Força: F em Newtons
e
Massa, m em gramas
E Aceleração, a em metro/segundo quadrado

E etc.
Mas há uma outra Física e uma outra matemática no Japão. E nessa outra ciência – a ciência da existência – a grande variável é a delicadeza, a De.
De como símbolo que deve ser considerado nas contas.
Sim, há velocidade e força e resistência, mas há, ainda, no Japão, a delicadeza.
Mede a força, mede a resistência, mede a aceleração, mede o peso e mede também a delicadeza, De.
E qual a unidade de medida? A Tranquilidade resultante. Exacto, como qualquer elemento da Física: o que resulta do uso da delicadeza? Tranquilidade.

Pode, então, existir maior ou menor delicadeza ou mesmo au- sência dela:

100 De, 27 De, ou 0 De.

E de zero De resulta agitação, ansiedade, tensão e, por vezes, no extremo, medo.
E, pelo contrário, com níveis de De altíssimos resultam a calma e a tranquilidade que vai dos humanos para a natureza.

Pedir, assim, para que a De entre nos cálculos da Física Japonesa (será que já entra?)
E pedir que essa variável seja depois importada a preço zero – o preço mais delicado diríamos: zero. A dádiva como a delicadeza pura; a venda, o comércio, pelo contrário, como a entrada num sistema de rudeza,

E, sim, que a Delicadeza seja importada a preço zero, por via de dádiva simples, para o Ocidente.

Delicadeza em relação aos humanos, à natureza, aos objetos, e delicadeza até em relação ao artificial. Deves tratar tão bem uma máquina fotocopiadora como um animal: não bater, não sacudir. Ser delicado em relação às máquinas, eis o novo repto que do Japão vai para o Ocidente.

9.
A pintura japonesa tradicional é uma forma de descanso; como se os olhos fossem viajantes extenuados e ali, naquele rectângu- lo, tivessem hospedagem. Descansa aqui, um pouco antes de wwww o teu percurso – dirá a pintura.

É também uma forma de colocar os olhos a actuar não sobre uma superfície (actuar sobre a superfície como faz o tacto que não quer entrar nas coisas, mas apenas delas sentir a pele), mas sim sobre o interior. Pintura japonesa clássica como forma então de escavação: profundidade alcançada por um horizonte em cor que é ali criado. Os meus olhos não podem continuar o seu percurso enquanto eles mesmos não chegaram lá ao fundo, ao fundo do quadro, ao fundo da paisagem. E assim os olhos tornam-se pés e pernas e avançam e avançam sempre com o mesmo horizonte fixo. Um quadro é, pois, uma forma de marcha, de caminhada. E tirar os olhos de um quadro clássico japonês de uma paisagem não é movimentar a posição dos olhos, é tirar os pés e o corpo inteiro de dentro de uma paisagem. No fundo, é o trabalho da hipnose, mas em forma de sedução e não de técnica ótica. Sou seduzido e não hipnotizado ou convencido. A sedução não argumenta, muito menos dá ordens; a sedução está ali e deixa-se estar e nada faz a não ser estar presente. Eis o quadro clássico japonês de uma paisagem: somos seduzidos por algo que está ali, já estava ali, vai continuar a estar ali, e da mesma forma. Somos seduzidos por esta tranquila indiferença do quadro em relação ao humano. Não corre para o pé de nós quando entramos na sala onde ele está pendurado. A pintura japo- nesa clássica é isto, esta potência que vem da imobilidade sedutora.

Imagens no meio dos quadros de Mário Vitória. Pintura e Japão. Japão e pintura.

Gonçalo M. Tavares, junho 2020