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Para um manual de iniciação à pintura de Mário Vitória, em 5+1 pontos

1 A arte é um lugar de errância

A natureza nómada das imagens não anula o seu enraizamento territorial e cultural ou a sua pertença a uma época, pelo contrário, é a marca identitária que as imagens transportam que lhes permite emergirem noutros contextos, partilharem o campo da pintura com referências díspares, instalarem-se na obra de novos autores e sobreviverem em períodos desconhecidos. Se as características das imagens não se definissem tão nitidamente, talvez elas não conhecessem esse destino errante.

Motivos e elementos figurativos circulam entre linguagens, da banda desenhada ou do cinema, da literatura ou dos relatos sagrados, da comunicação ou da publicidade, mas também da pintura para a pintura. É, em parte, a este trânsito que se deve uma grande coesão da cultura artística ocidental, ao longo da qual se incentivou a importação e a apropriação de imagens, mais intensas em certas épocas do que noutras, mais literal em certos momentos e mais livre noutros, fundadas em teorias e premissas conceptuais em que cópia, imitação, citação, revival, colagem ou pastiche tiveram papel determinante.

2 A arte é um lugar de mutantes

Ganha-se e perde-se nesta deambulação, cada imagem carrega o seu corpo figural, valores culturais, imaginários autorais, significados situados, numa convergência multidimensional que se reconfigura, parcialmente, no confronto com novas circunstâncias e novos argumentos.

É da pintura de Mário Vitória que estamos a falar, da sua inscrição na criação de imagens complexas e do seu contributo para a alteração destas entidades de condição mutante.

3 A arte é um lugar crítico

O vasto campo visual e a literatura, plena de pretextos e de histórias, alimentam incansavelmente a pintura de Mário Vitória. Na sua missão crítica, de comentário social e político, em cima dos acontecimentos do presente, revê, num tom irónico, a lógica fabricada dos territórios e das fronteiras do planeta, os símbolos do poder e da demarcação, coroas, riquezas e armas, e lê a história como desculpa de monumentos. Entre monumentalização e contra-monumentalização, entre apresentação e sátira, entre incómodo e desdramatização, dir-se-ia que este trabalho está pronto a assumir o lugar que outrora a pintura de história atingiu, ou o lugar que certa pintura mural, de comunicação e resistência, ocupou.

4 A arte é um lugar de artifícios

O palco onde Mário Vitória encena é uma plataforma, um rochedo, um pedaço de planeta algures no espaço. Rodeia-o um ambiente indefinido, de nuvens e poeira cósmica, abrem-se sobre ele cortinas à maneira teatral, completa-se a paisagem de fundo com um grande círculo incompleto, como um círculo solar, árvores esguias delimitam um centro, mas nada contribui para a verosimilhança destes espaços de uma estranheza reforçada, em certas pinturas, por um quase mono ou bicromatismo. Os acontecimentos são travessias, marchas para lugares incógnitos. As personagens percorrem itinerários, são equilibristas em varas circenses, ciclistas equipados para o espaço sideral, astronautas, carregadores, estão concentradas nas suas tarefas, ocupadas a estudar um globo, a auscultar e a limpar obuses, a tratar um maxilar, mas nada quebra os sinais do artifício. A Criatura, uma dessas personagens-máscara, com as marcações elementares de uma face, analisada com cuidado de cientista, aparece e reaparece incessantemente.

5 A arte é um lugar de concentração narrativa

Não são apenas as imagens disponíveis – presenças da história e imaginações do presente – que nesta pintura se concentram, mas as coordenadas de espaços e de tempos distantes que geram mundos instáveis e permeáveis.

Fecho

Esta exposição atravessa o percurso de Mário Vitória, com trabalhos datados de 2008 a 2018. Perante a exuberância figurativa desta obra, com as suas enumerações, citações e referências, a tentação descritiva é grande e a adjectivação inevitável, daí que a procura de 5 notas esquemáticas sobre a pintura de Mário Vitória, naquele que foi um primeiro contacto com a sua obra, tenha o valor de uma iniciação.

O que vemos influencia o modo de comentar, ao ponto de conformar um certo tipo de texto. O modo de comentar interfere com o que vemos, ao ponto de revelar aspectos que não estão lá. Há um jogo de espelhos em que obra e texto se olham, um disfarçado do outro, num jogo de aparências tão enganador como duas personagens de uma dança famosa.

 

 

Laura Castro, maio 2018