Se cada cardume for exuberantemente um mapa do devir
Os mapas constroem-se mediante
uma ostensão com várias dimensões.
Fernando Gil
“Mergulhos de Renascimento: a grande União dos Cardumes” celebra a vida através de tudo o que a exalta e o que torna possível esta exaltação: a troca, tal como Lévi-Strauss a tematiza. E por isso, a exogamia que, neste caso, se cumpre em diáspora.
Deste modo, é evidente a existência de um jogo entre a identidade e a alteridade. Só podemos compreender a identidade a partir de uma visão excêntrica, despojada de qualquer miopia. O ser, concretizado no ente, enceta o movimento para o outro, seja literalmente, seja de Portugal para o mundo e, nesta obra, entre Portugal e a França, sem esquecer a fonte onde estes países foram beber o Atlas dos valores, expressos cartograficamente por Mário Vitória em cores exuberantes, que se evidenciam como uma presciência da definição das formas no seu devir. As cores feitas à escala orientam a legibilidade, mercê de um contraste de cores nítido, ou flutuante, evidenciando uma harmonia metonímica entre o pormenor e a totalidade.
As imagens — sejam ostensivas, ou desvelando a arte em miniatura de um Francisco de Holanda, ou do seu genitor, António de Holanda — serão então caminhos de confluências que depois se dispersam, e podemos dizer que o tempo desenlaça os pequenos trechos de silêncio entre os vórtices que arrastam a cena para um dos centros do palco, ou o movimento vertical da transcendência que toma as cores da imanência. O cartógrafo faz da própria obra — “Mergulhos de Renascimento: A grande união dos Cardumes” — uma vitória do olhar sobre o desconhecido, presentificando símbolos maiores de cada cultura e passagens pelos estreitos apertados que os alimentam. Mas é também uma demanda que, tendo como exemplar a grande época do Renascimento e o significado do próprio termo, intenta um novo nascimento. Contra o caos, a estagnação e a iliteracia, a obra apela a que as valências do Renascimento sejam actualizadas na mesma liberdade (figurada por Marianne, na versão de Delacroix), na igualdade e fraternidade, símbolos impressos na bandeira e coração da França. A igualdade de mérito e dignidade entre os campeões olímpicos e paraolímpicos é, aqui, soberbamente tratada na elegância escultórica dos movimentos de cada atleta. Atente-se na poesia imagética do atleta que toca a água com o seu pé marinho e mergulha nos ares com o seu braço-asa, assim como da cadeira de rodas coroada por todas as vitórias.
A solidariedade do cardume de nadadores desvela-se como novo encantamento fraterno que urde cadeias de sentimentos, sobre e sob as águas, que banham os nossos sentires moventes a caminho do Amor, grande lição da pena de Camões. Em Sá de Miranda e no Renascimento português, em geral, a palavra “encantamento”, tem um pendor pejorativo, ligado a falsas imagens que levam ao enleamento. O encantamento por Circe e pelas sereias são exemplos originários desta ideia que, na Antiguidade, ganha forma maior na Odisseia. Mas o encantamento tem também uma outra face de altruísmo ou de sedução sem engano: a sedução que nos espera no Paris fervilhante de 2024, como nas imagens da barística parisiense, dadas por Apollinaire através do gás fervilhante do autoselz, a cintilar na noite. As mesmas luzes efervescentes que iluminam os migrantes que, por sua vez, iluminam a viagem olímpica à montanha azul.
Também a nós, expectadores de uma “obra aberta”, até onde os mares nos levarem, é solicitado o movimento de uma para a outra face da obra, assente sobre um plinto que recebe o excesso da criação: os livros que nos deslimitam. Contemplamos a obra pictórica com a deslocação que uma escultura en ronde bosse demanda, com o movimento que o desporto celebra e exige.
A predominância do azul em forma e fundo significa, ao mesmo tempo, tanto e tudo mais. Se soubermos da vocação deste trabalho de Mário Vitória para a modalidade Natação nos Jogos Olímpicos de Paris 2024, o elemento azul integra o seu símbolo. Na face francesa, intitulada “Cardumes”, o azul é imperturbável e brilha nas cores dos vitrais de Notre-Dame, dessaturando-se num chão de Nenúfares de Monet. A imagem da catedral é o elemento vertical que estrutura este lado francês do trabalho, um lado mais racionalmente modelado, em que as figuras das naves laterais se elevam e as da nave central descem ou ficam suspensas, como os anjos de Win Wenders no alto dos edifícios e como a trapezista do mesmo filme, Asas da Liberdade, protagonizada por Solveig Dommartin.
E no filme Azul — o primeiro filme de: Trilogia das Cores, de Krzysztof Kieslowski, o elemento líquido é primordial, já que de Liberdade se trata e eu pergunto de que cor é o horizonte, de que cor é o mar. As imagens de Juliette Binoche, nadando para expurgar as emoções que se recusam a dizer de si, são vigorosas até ao momento em que a cabeça e o dorso ascendem na borda da piscina e voltam a mergulhar, porque cada braçada apela uma outra e a água nunca é suficiente para tirar a sede. A movência vigorosa tem qualquer coisa de sublime na persistência perfeita do seu ritmo.
Nesta obra de Mário Vitória, as figuras tecidas em diagonais dão-nos a dinâmica de forças que descontêm o presumível espaço. Os Descobrimentos, como força inequívoca para o conhecimento, rompem em braçadas os limites do dado, no movimento que impele para além do possível.
Cada face do quadro revela, exuberantemente, resíduos bem referenciados de um mapa do mundo português na França e um mapa francês diasporizado com emanações em Portugal, com alicerces de estradas e de prédios portugueses e dos seus interiores esmerados. Exportámos este brio nas casas, nas escadas que ascendem para logo se precipitarem pelo solo, no cheiro a lavado que herdámos dos lavadoiros e dos rios, sempre que corámos ao sol o desprezo pelo nosso trabalho de conquistadores do quotidiano.
Quando era miúda, na fronteira e para lá dela, Portugal era o Eusébio e a Amália, e para alguns Fernando Pessoa. Os outros, todos nós a visitar Paris ou qualquer França, éramos emigrantes pontuais, ou a longo termo. Éramos braços e pernas em movimento e peso. O detergente era a ideia do nosso perfume curvado para o chão.
Mas éramos, e somos, inebriados pela arquitectura, as artes, a literatura, o aroma das ruas desempoeiradas; por tudo aquilo que se transmuta em Luz, nesta cidade que iluminou a nossa ânsia de arte, cultura, civilização, art de la table e esse savoir-faire, que deliciou o casal Delauney, quando um português lhes apareceu ao portão, anunciando que era o pintor português Amadeo de Souza-Cardoso. Os seus galgos não escapam a Mário Vitória. Eis os galgos, como se prontos ao salto, prestes ao ímpeto que inicia o jogo nadador.
E nesta face portuguesa da escultura em ronde bosse, os símbolos apontam para uma figura maior: Alberto Caeiro, o mestre de Fernando Pessoa, de quem a obra enuncia a imagem do poema “O Guardador de Rebanhos”, sendo nós os guardadores dos livros esparsos até ao deslimite desta escultura, pensada pictoricamente.
Nesta face intitulada “Entre água, cravos e rosas” há muito menos referências arquitectónicas, mas tudo é símbolo. Aliás, os símbolos também migram neste jogo de participação, à maneira de Lévi-Bruhl, entre Portugal e França. O búzio, ostentado na face francesa é, segundo Mário Vitória, uma alusão a uma portugalidade, em que o deus Hermes (de Michel Serres) e o cosmos comunicam e interferem num sussurro. Porém, neste lado português, onde nada está, mas tudo se move, as figuras simbolizam valores modernos e eternos, como a imagem da rainha Da. Amélia, da rainha Sta. Isabel, do Padre António Vieira. E somos levados à cultura como iniciação, nas formas de literatura e de pintura, sem esquecer a do desporto.
Se Victor Hugo considera que a arquitectura é o grande livro da Humanidade, uma vez que nos revela como cada povo, em cada época, apreende e simboliza o mundo, então Mário Vitória reescreve a arquitectura franco-portuguesa, enfatizando a expansão portuguesa pelos mares e as incursões pela França, em símbolos representativos das duas nações e das trocas geradoras de transformação e expansão de cultura e conhecimento.
Neste alfabeto pictórico, cada letra de pedra é um menir: os cavalos significando a força, o rinoceronte, as baleias, a árvore, e também o rosto de Amália, de Pierre de Coubertin, de Camões, Diderot, Infante D. Henrique, Foucault, Pessoa, Suzana Barros, Victor Hugo e tantas mais. E em cada imagem lançada para o infinito da tela repousam grupos de ideias, sílabas vocálicas que se juntam para formar o barco, o astrolábio, o balão de ar quente e outros instrumentos. A imaginação e a sede de conhecimento exigiam mais complexidade e criaram-se frases inteiras interligadas para a exaltação do sentido, como o ideal republicano, edificado em cada face da obra, nas faces das mulheres que a representam. Mas também a abadia de Fonteney, a Torre Eiffel, a catedral de Notre Dame requerem frases imensas que se concatenam para idealizar o livro. Os atletas são palavras que, juntas no ideal olímpico, se erguem também como uma catedral. Refletida no elemento água, a catedral agita-se harmoniosamente, enquanto os cardumes escultóricos atravessam o azul, rumo ao devir da Humanidade.
É assim que Mário Vitória integra a tradição e a contemporaneidade num mesmo movimento do nosso espírito para um bem maior. Que seja este o horizonte do devir!
Rosa Alice Branco (comentário à obra Mergulhos de Renascimento: a grande União dos Cardumes)
Rosa Alice Branco, junho 2025