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Outros Espaços e outros Tempos

«A nossa época talvez seja, acima de tudo, a época do espaço. Nós vivemos na época da simultaneidade: nós vivemos na época da justaposição, do próximo e do longínquo, do lado-a-lado e do disperso.
Julgo que ocupamos um tempo no qual a nossa experiência do mundo se assemelha mais a uma rede que vai ligando pontos e se intersecta com a sua própria meada do que propriamente a uma vivência que se vai enriquecendo com o tempo»

— M. Foucault, De Outros Espaços

O excerto do texto de M. Foucault sintetiza duas das ideias que me parecem essenciais na análise das pinturas instalação apresentadas nesta exposição no Museu do Vinho e que Mário Vitória denominou “Erguendo o Sangue da Terra”. A importância do/s lugar/es ocupado/s (espaço) e a noção de tempo.

Estes dois conceitos parecem-me estabelecer um interessante ponto de partida para a leitura que farei. Em 2006 quando escrevi sobre a exposição “SMVSEVM” parti do desenho como gerador do imaginário do artista. A sátira político-social veiculada pela caricatura, apoiada na fábula e fazendo uso frequente de metáforas e alegorias, então consideradas as ferramentas do discurso pictórico, continuam presentes nos desenhos e pinturas instalação desta exposição. O ser homem indistinto do ser animal. Animais que se exprimem em emoções, ganâncias e gestos humanos. O jogo das falsas ingenuidades, do fingimento, da debilidade, da benevolência, da esperteza saloia, da crueldade ou humanismo foram, desta vez, recontextualizados à luz do mito dionisíaco que, na actual exposição, desempenha um papel estruturante.

O que gostaria de sublinhar nesta fase é que o artista continua a utilizar a mesma tipologia de discurso figurativo e a mesma estratégia gramatical. As micro-narrativas que cada desenho ou pintura encerra mantêm a justaposição e a simultaneidade espacial e temporal. Cada imagem transmite um esforço de associação que determina uma configuração que não se rege pelas “pré-estabelecidas” regras da cronologia, das hierarquias sociais… tudo foi reinventado e reencenado. No texto referenciado em epígrafe, M. Foucault relembra a forma como no período medieval se distinguiam os lugares sagrados e os profanos, os urbanos e os rurais, os supra-celestiais, os celestes e os terrenos e de como esta individualização foi posta em causa com Galileu, criador do conceito de infinito e consequentemente da noção de espaço infinitamente aberto. A noção do lugar de alguma coisa deixava assim de fazer sentido e o movimento substituía a noção de lugar. Segundo Foucault, o movimento supre a localização e é o conceito de extensão que passa a vigorar. O sítio passa a define-se pelas relações de proximidade entre determinados pontos e elementos.

É esta a noção de espaço que identifico nos desenhos e pinturas instalação de Mário Vitória. No entanto, o carácter concreto daquela noção, cede lugar ao simbólico criando um supra-espaço, totalmente dessacralizado ao contrário do espaço contemporâneo, pois como sublinha o próprio Foucault existem dicotomias que ainda não foram ultrapassadas: público/privado, familiar/social, cultural/útil, lazer/trabalho. Mário Vitória vai mais além no seu universo pictórico. As dicotomias espaciais deixaram de existir. E neste sentido aproxima-se mais da noção de espaço fantasmático definido por Bachelard: o espaço da percepcão primário, dos sonhos e das paixões. Referindo-se àquele conceito, Foucault fala de um “espaço luminoso, etéreo e transparente, ou um espaço tenebroso, imperfeito e que inibe os movimentos, um espaço do cimo, dos píncaros, e um espaço do baixo, da lama, há ainda um espaço flutuante (…) e um espaço fixo (…) “.

Numa conversa tida em 2006, citando “A Hora do Diabo” de Fernando Pessoa, Mário Vitória falava-me do espaço da sua pintura como um “vácuo dentro do vácuo” de “nadas que giram satélites na órbita inútil de coisa nenhuma”. Que “tudo isto aqui (…) é apenas um recanto mentiroso da verdade inatingível” e que “Essas coisas acontecem na terra, porque os homens são animais”. O discurso mantém-se actual. Só já não considero aceitável a ideia de vácuo que então me pareceu válida. O sistema de relações estabelecidas entre personagens determinam sítios que não se sobrepõem mas que se justapõem. Um palimpsesto em que todos os discursos são legíveis. É esta ideia que me permite classificar os espaços criados pelo artista como contra-espaços no sentido que lhe é atribuído por M. Foucault. Os contra-sítios são utopias realizadas, nas quais todos os sítios reais da sociedade podem ser encontrados e onde são simultaneamente representados, contestados e invertidos. M. Foucault designa estes lugares como “heterotopias”, “espaços diferentes”, “lugares outros”.

No texto do filósofo não se refere o espaço pictórico como uma possível concretização heterotópica. No entanto, parece-me uma hipótese a considerar, já que o artista consegue sobrepor num só espaço, vários espaços que por si só seriam incompatíveis. O facto de Foucault considerar o jardim, o teatro e o cinema como exemplos é indicativo dessa possibilidade. O exemplo que é dado do Jardim Persa é bastante interessante. Espaço sagrado que reiterava nos seus quatro cantos, os quatro cantos do mundo, com um espaço supra-sagrado ao centro, o umbigo do mundo ocupado pela fonte de água. Toda a vegetação deveria estar ali reunida formando um microcosmos. O jardim era a mais pequena parcela do mundo e ao mesmo tempo a sua totalidade.

As analogias que podemos estabelecer entre esta concepção do mundo e os Desenhos Intencionais de Mário Vitória parecem-me evidentes. O peso central da composição, a dispersão aparente das personagens retiradas de diferentes contextos que parecem harmonizar-se numa dança exaltada que converge para o centro, que é ao mesmo tempo um retorno a si próprio e a sua anulação.

Estruturante em grande parte dos núcleos desta exposição é, como referi no princípio deste texto, o mito dionisíaco. Dionísio é o deus do vinho, do êxtase, da música que se apossa do corpo. É a divindade da metamorfose, da habilidade em mostrar aquilo que não se é, da transformação, da superação de si mesmo, da ideia do vir a ser, de devir, não da permanência mas do ininterrupto jogo de forças, das desmesuras, da embriaguez que elimina barreiras e conduz à dissolução do indivíduo em busca da alteridade, da elevação, da libertação.

A outra noção que considerei dominante no projecto de Mário Vitória é a concepção temporal, a noção de tempo ou tempos, a sua sobreposição ou melhor, justaposição, em suma a constatação da simultaneidade de diferentes concepções temporais num mesmo espaço pictórico. Para além da sobreposição espacial, as heterotopias pictóricas de Mário Vitória revelam também acumulações temporais: da mitologia greco-romana com o culto dionisíaco, à contemporaneidade sócio-económica da região centro portuguesa com a produção vinícola da região da Bairrada; da renascença florentina do século XVI com a referência compositiva incontornável da Batalha de Anghiari de Leonardo Da Vinci, aos tectos barrocos tiepolianos cujas composições arquitectónicas fingidas, o movimento centrifugo e ascensional estão bem referenciados nos desenhos de Mário Vitória.

Ana Luísa Barão, janeiro 2011