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O indivíduo como paradoxo

A exuberância das imagens de Mário Vitória prende-se à sua imaginação prodigiosa que lhe permite criar as mais extensas narrativas numa só tela, sendo exímio no domínio da metáfora, sempre tão rente à crítica do teatro humano.

O trabalho deste artista é, assim, feito de uma profundidade admirável, mesclando opostos para acusar a complementaridade das forças, como se inevitavelmente fossemos todos origem de bem e de mal.

Não é de estranhar, por isso, que a amplitude das referências de Mário Vitória possa começar na Disney e chegar a Alfred Hitchcock, colocando numa mesma cena a ingenuidade, a melancolia, a agressão e até o grotesco, num resultado que acaba sempre por ser uma violência clara da existência, como se a existência, por definição, dependa ou se faça da violência.

A ironia com que isto é assumido acentua-se na exposição que agora apresenta, sobretudo nas telas em que naturezas mortas se vêem invadidas por figuras reconhecíveis do imaginário infantil, numa mistura de um certo clássico com um profundo pop, entre o que poderia ser imediatamente entendido como uma relação da arte com a não-arte, ou arte menor.

A citação directa que o artista faz dessas personagens de banda desenhada ganha um relevo fundamental, sendo a partir delas que se destroem as ideias preconcebidas do que é um quadro (do que é a arte), como se de uma contaminação se tratasse, vinda do quotidiano desprevenido da infância.

Esta intromissão de tais figuras na tela são a sarcástica maneira que encontrou para denunciar o declínio das boas vontades, como se fosse irremediável um destino de desgraça, como se desgraçar o próximo fosse apanágio da sociedade contemporânea e como se, mais concreto ainda, esses valores nos fossem já incutidos pelas brincadeiras de miúdos, por esse mundo de brinquedos e imagens com que nos detivemos longa e inocentemente nos tenros anos das nossas vidas.

Em suma, tudo vive no conflito, em estado de crise fundamental que tudo convoca e tudo obriga a uma defesa, sob pena de perecer numa participação tão efémera na vida. Tudo sobrevive – condição irónica de estar vivo, a da sobrevivência –, como num jogo em que o corpo, o carácter, o equívoco, o azar, ou qualquer outra premissa se pode rebelar contra a nossa viabilidade ou contra viabilidade dos nossos intentos, para dificultar-nos ou impedir-nos de vez o caminho.

Perante as telas de Mário Vitória todas as coisas do mundo, e todas as histórias, podem ser encontradas, pela espantosa capacidade de deixar pistas sem nunca se tornar demasiado definido, sem nunca nos retirar a possibilidade de criarmos também, que é o mesmo que dizer que nos deixa um longo espaço para a identificação, onde creio que caibamos, mais rápida ou mais lentamente, uns e outros até à exaustão. Como acontece nas grandes obras, obviamente.

Valter Hugo Mãe, outubro 2009