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Os limites também viajam: aproximação a uma prática artística

Este texto surge da maior consideração pelo poema “Mosca Azul” de Machado de Assis que um professor de Antropologia me apresentou um dia. Desculpando-me desde já pelo que será o “dissecar”, (verbo acutilante e vizinho do acto de “explicar”) da minha prática artística. Ele surge como uma resposta/síntese à pergunta mais frequente e desconfortável “De que trata e como é a tua obra”?. Apesar de tudo, sejamos justos para quem as nossas produções suscitam curiosidade. Da minha parte, sinto que uma aproximação pode ser feita, mesmo que seja um embaraço sintetizar em instantes práticas , consistências, lacunas, centros, periferias, contextos que se cruzam de modos bastantes particulares. Assim, corre este texto em primeira pessoa, talvez para evitar alguns equívocos ou simplificar um pouco a ordem das coisas que vão construindo a minha prática artística. Este texto está então de mãos dadas com a curiosidade daqueles que pretendem saber um pouco mais sobre essa prática, deixando ao mesmo tempo “em aberto” as categorias que cito, porque me preocupo (muito) com os limites e a necessidade constante da sua viagem (o mesmo acontece com o presente texto que se metamorfoseia com as obras a que se refere ao longo do tempo e do espaço que já deu para ver que é como o nosso espirito: incomensurável).

O meu trabalho artístico conhece múltipla facetas e perante esse cosmos, tenho arrumado algumas galáxias em quatro títulos, para quatro práticas distintas: “Desenhos intencionais”, “Cosmo (em detrimento de “circo humano” por ter sido um titulo bastante enclausurado)”, “Naturezas Vivas ( outro titulo que necessitava de ser desencarcerado foi o de “Natureza Asssassinas”) e “Instalações/objectos” (muitas vezes esta última categoria denomino-a de “Lucubrações”).

Numa primeira análise, a única ordem que distingue as várias práticas é a física, ou seja, os suportes das representações. A primeira acontece sobretudo sobre o papel, a segunda e a terceira prática geralmente a tela, a quarta expande-se na diversidade de materiais e técnicas que a volumetria possibilita.

Os dois primeiros ramos “Desenhos intencionais” e “Cosmo”, apresentam uma estética visual feita a partir das contingências técnicas das práticas artísticas contemporâneas, nomeadamente do desenho e da pintura, com alusões à arte urbana dos grafitti, à Pop arte, ilustração e aos “mundos possíveis” das portas abertas pelo Surrealismo e Dadaísmo. Mas é com o Neo-realismo que se corresponde em intenção.

Os “desenhos intencionais” admitem-se como metáforas em torno da discussão do que será o “âmago humano”. O centro é o homem e as sociedades em que se insere, representado, na maioria das vezes de um modo anacrónico e permeável a todos os equívocos e sucessos no caminho da dignidade humana e do bem viver. Estes desenhos constroem e apoiam-se, como se de colagens se tratassem, em formas ícone, clichés, simbologias e mitos do nosso quotidiano. Falam sobre a identidade e especificidade das coisas, a sua crise, a sua constante reformulação à luz dos acontecimentos diários. São a reflexão em torno do âmago humano, numa narrativa sobre a suposta filosofia geral da humanidade, em colisão com o desassossego que se encontra no equilíbrio entre a ética e a sua prática que é a moral, residindo aqui o seu carácter intencional ao narrar as suas aplicações e equívocos.

Em “Cosmo”, o jogo de escalas constitui geralmente, um dos pontos de reflexão, existem telas que se agigantam pelas suas dimensões. Muitas vezes, querem satiricamente concorrer com anúncios, cartazes de cinema no seu êxtase de propaganda, mas querem sobretudo assumir-se como cenários com os quais nos podemos confundir ou mesmo visitar. Explora junto do observador duas ordens: Uma interna, perante os próprios modus operandis da pintura-desenho e outra externa, pelos conteúdos que aborda, em muitos casos, recorrendo à ironia, noutro à proporção que encontramos na simplicidade do conceito de Beleza e espiritual. Portanto muitas vezes as obras são o dedo que aponta e nunca a sua representação visível.

A performance desta prática parte de simbologias, arquétipos, normas, misturando-os e re-interpretando-os. Como todo o trabalho artístico, visa ampliar a compreensão, posicionamento e percepção daquele que interage com este trabalho. Por vezes quer do observador a sua potencialidade criativa, nomeadamente do seu raciocínio conotativa, mas é de coisas simples que quer falar, preservar e convocar. Trata-se de um trabalho de acção retórica, aquela que põe em crise o conhecimento adquirido, sugerindo algo que “sai do caminho”. Assumo um certo que gozo que reside na gestão de “significados nublosos” como referia Umberto Eco. Um conflito entre a convenção e aquilo que se propõe, resultando numa aparente “inadequação” desejada.

Preparo nos suportes pinturas que recebem posteriormente a sobreposição de desenhos. Trata-se de uma política interna invertida aos preceitos da pintura, aludindo e enaltecendo a raiz do desenho. O riscar, traçar, rasurar, dividir, marcar, e sobretudo delinear e revelar para lá da pintura que tradicionalmente o sobrepõe, apagando a sua eficácia e reserva. Assumo visualmente os erros, permanecem visíveis as indecisões dos traços e os passos que dei para chegar às figuras e formas finais. Alerto para a simplicidade do traço, suficiente para a mensagem que se tenta comunicar. Procedendo assim, de um modo metafórico a partir do campo da poésis, exponho uma fusão entre a “simplicidade” eficaz do desenho, e os gestos “simples” do Homem, que tendem a ser os mais eficazes gestos de magnanimidade.

A fantasia que surge nos quatro ramos do meu trabalho colide com limites e paradigmas da realidade. Nessa fuga propõe valores periféricos, procura construir um jogo de combinações por via do humor, deslizando entre mundos distintos. Tal como Wunenburger observa, o poder desviante da imagem permite modificar e transformar a realidade, produzindo “mundos fictícios” alternativos. Trata-se de construir realidades mais reais do que aquelas das quais parti. Movendo-me no campo retórico, nos caminhos da persuasão e na inevitabilidade de lidar com a verosimilhança. Por conseguinte, um dos esforços e desafios da minha prática artística está em propor um desvio a determinado sistema, lei ou ordem. Fazer com que o publico desconfie dessa mesma norma, que tão bem conhece, e aceite um “novo” que possa ser estabelecido. Uma representação mais real do que o próprio referente, sobrepondo-se, revelando a sua verdadeira essência. Um jogo e prática tão celebre do campo da mimésis detonadora, quando associada ao humor e à caricatura. Por muito ténue que possa parecer essa ligação, proponho mundos possíveis mais reais do que a realidade literal.

É nesta lógica que surge o terceiro ramo do meu trabalho denominado de “naturezas vivas”, em contraponto às “naturezas mortas”.

Os artistas ao longo da história utilizaram este género de pintura pelo virtuosismo técnico na luta pelo prestígio, mas também como veículo de reflexões morais, alusões políticas ou a dogmas religiosos, na maioria das vezes, escondidas. É aqui que reside o interesse e apropriação do meu trabalho. Procuro confrontar o espectador perante estes “objectos imóveis” agora animados com bonecos dotados duma certa violência. Subverte e transforma o título corrente que desde o séc. XVII holandês se dá por “natureza morta”, para “natureza assassina”. Usando termos de Erwin Panovsky, com a bandeira de um novo título exploro “simbolismos disfarçados”, alerto para “capa” das aparências da nossa realidade excessiva. Quando o observador se aproxima da tela verifica que pelo meio da fruta e vegetais existem pequenos bonecos que guerreiam alegremente até à sua morte ficcional. No entanto este mundo fictício não perde os referentes da realidade. A simbologia dos bonecos refere-se à infância e ao mundo dos adultos que não cessam de revelar uma identidade de excesso e destruição, brincando na sua violência real. Está também aqui em jogo um trabalho transformativo que se aproxima à caricatura, nas suas dimensões de deslocamento, transferência e substituição. Quer corresponder-se com a metáfora, sublinhando a afirmação de José Ortega Gasset: “a metáfora é provavelmente a potência mais fértil que o homem possui”, assumindo-se como “ ferramenta de criação que deus deixou esquecida dentro de uma das suas criaturas na ocasião em que a formou”. A metáfora permite um momento de reciprocidade comunicativa entre o emissor e o receptor acerca de um desvio, atraindo para um mesmo plano significados periféricos. Convido e alerto então o público decifrador a aceitar a violação da norma, saboreando a ampliação dos significados.

A prática do meu processo criativo deve-se à improbabilidade e uso inesperado de simbologias, à justaposição de conceitos aparentemente irreconciliáveis. Tudo isto, não por mera combinação, mas antes pela criação de uma dinâmica entre norma e desvio, como referi anteriormente. Pensamentos laterais que comovam o espectador para uma mudança de perspectiva.

O desenho, a volumetria ou a pintura a traços, como também pode ser designada parte da minha prática artística, procura trazer para o mesmo plano o Homem, o fantoche, os animais, a Natureza apontando para  valores semânticos resultantes nos seus cruzamentos. Os fantoches são observados sempre perante uma perspectiva humana. Alertando-nos sobre as suas vidas ficcionais que em muito se confundem com as nossas. É normal que surja frequentemente a personagem de um fantoche nas minhas representações. Um pequeno boneco, a “Criatura”, apelidada muitas das vezes pelo espectador como “figura sem interior ou conteúdo”. Extraordinária designação, mas não será só isso, de todo ela está apenas no campo de uma suposta “falência”. Esta figura, quer-se ambígua, uma metamorfose de Playmobil e Pinóquio que me permite, muitas vezes, “aligeirar”, tolerar a entrada em temas violentos, ela surge para mim como uma ferramenta capaz por via do humor (dada a sua identidade metamorfoseada) de alertar, tal como o fez Henri Bergson, sobre o lado mecânico e “acidental” com que as nossas vidas, por vezes, se revestem.

Toda a estratégia de narrar a crise de identidade sobretudo a mais mecanizada e automática, procura colocar o Homem no caminho da gratidão e da união. É um esforço e pedido de uma introspecção geral, o fim das ideias colonizadas. Uma vontade de fim da história “era uma vez mais” o Homem acima dos deuses e dos mistérios e sobretudo acima dos próprios Homens. Procura edificar uma viagem pelo verdadeiro âmago humano.

As referências são múltiplas para todas as ramificações da minha obra, inclusive a volumétrica, de onde surgem pequenas esculturas e objectos volumétricos a que dou o nome por vezes de “lucubrações”. Estão de mãos dadas com o significado de lucubração, apelando para a necessidade duma meditação profunda das civilizações. Um convocar pertinente de uma meditação diária, um sentido de vigília e trabalho interventivo. Precisamos de um longo serão de trabalho perante as atrocidades do mundo, debruarmo-nos como contra ponto perante o fenómeno conflituoso de fronteira. Em todas as horas devemos colmatar o lapso contra a dignidade Humana. Lucubrando distanciamo-nos da estância do “medo” (forma maior de agressão e desprezo da contemporaneidade), relançando aquilo a que chamamos “a grande união de cardumes”.

Parto de uma tradição acumulada, reeditando discursos e imagens, na comparação com factos ou estórias actuais da mitologia urbana. Trata-se de certo modo de um trabalho e estratégia de acumulação e posterior depuração. As imagens encontram-se dispersas pelo chão do ateliê, são observadas e pensadas como se tratassem de achados arqueológicos, vão sobrevivendo umas às outras e ponderadas em termos associativos, é neste ponto de confronto que são sugeridos desvios ao que constituía as suas funções primeiras e isoladas. Colocadas deste modo lembram o método de análise de Aby Warburg que neste caso aplicado, promove um ambiente alegórico. Permite uma progressão aos limites das coisas existentes sem as abandonar, numa “acumulação” por via da continuidade e da transformação. Tal como Craig Owens refere: o “alegorista não inventa a imagem, mas confisca-a”.

Todos estes aspectos constituem raciocínios inerentes à escolha das imagens do meu processo criativo. Referem-se tanto a aspectos verídicos como a aspectos ficcionais, em mensagens que lançam o observador num terreno violento, risível, metafórico, alegórico e irónico.

Contornando um excesso de terminologias que pode, por vezes, confundir mais do que esclarecer, encaro a minha pesquisa artística como um espaço de reequação das limitações de determinado sistema, ordem ou conceito. Procuro ampliar valores a nível conceptual, semântico, icónico, ou mesmo espiritual através das associações, transformações, exageros, depuramentos Poéticos onde a dignidade humana em comunhão com a Natureza é o horizonte e meta disto tudo.

Mário Vitória, abril 2012