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Onde andas Rainha Santa que o Sebastião nunca mais chega

ONDE ANDAS RAINHA SANTA QUE O SEBASTIÃO NUNCA MAIS CHEGA?

 

“É um fenómeno curioso: o país ergue-se indignado, moureja o dia inteiro, indignado, come, bebe e diverte-se indignado, mas não passa disto.

Falta-lhe o romantismo cívico da agressão.

Somos, socialmente, uma colectividade pacífica de revoltados.”

Miguel Torga

 

E se o Sebastião tivesse voltado, pergunto eu ao Pintor, se ele tivesse voltado e se tivesse perdido de novo, no meio de nós, devolvendo-nos a responsabilidade do cenário que construímos, caótico, inóspito, espelho da nossa paisagem interior, tornada visível na tua pintura?

Talvez Sebastião tenha voltado e se tenha perdido por aqui, como se o seu destino fosse perder-se em palcos de batalha, e fazer jus a um dos seus múltiplos cognomes “O Adormecido”, anestesiado num mundo Disney, de Mickeys, de Tios Patinhas, heróis-bandidos sem escrúpulos nem ética, onde simultaneamente todos somos consumidores e consumidos.

Deambulando por esta nova exposição do Mário Vitória, imaginemos: Sebastião regressou desorientado, ascendendo a um novo trono, o da hierarquia empresarial e vive agora subjugado à espera libertação. Sebastião, guardador de esperanças, aprisionado, arrastando consigo um povo esquecido da sua identidade e grandeza passada, sujeito à vontade de potências estrangeiras.

Sebastião já homem, sem consciência de si próprio e da ratoeira em que caiu, à semelhança de uma boa parte da humanidade, perdida nas redes, teias e vícios urbanos.

É neste espaço cénico/cósmico onde todos os cruzamentos são possíveis, que viajamos com o Pintor, como se talvez ali, pudesse dar-se o milagre que não se dá aqui. Um cenário povoado de personagens/actores em contracena consigo mesmos, que ora jogam e brincam, ora lutam para sobreviver em espaços saturados onde não há lugar para uma vida digna, onde o perigo, a ameaça ou a escravidão, são presenças constantes. E o medo, sempre o medo.

O Pintor sabe que, escondido nas profundezas do ser contemporâneo, urbano, adaptado, moldado, escravo da trindade dos novos deuses: Sucesso, Poder, Dinheiro, obediente às leis do mercado, ao pensamento das classes políticas dominantes, nas profundezas desse homem, existe um sonho.

Um sonho encoberto, de que ninguém ousa falar quer por medo, quer por lhe parecer utópico e ingénuo. Mas a utopia contém em si a força criadora de novos mundos individuais e colectivos.

Miragem alimentada por milhões de homens e mulheres entorpecidos, atemorizados, aguardando a sequência de um acontecimento inesperado, um milagre.

Talvez a Rainha Santa, talvez, pergunta o Pintor, reanime o morto-vivo, Sebastião, e com ele todo um povo, e lhe devolva os ideais afogados no viver materialista, lhe devolva o sonho e a loucura capazes de o fazerem andar em frente sem temer a própria morte.

Sem temer, porque no medo e no silêncio, estamos aprisionados. Um sonho de libertação da sua escravidão, de regressar à vida, aos dias sem horas contadas, ao seu quarto dos brinquedos onde sonhar não parece perda de tempo.

Um sonho poético e filosófico mas nem por isso, irrealizável, onde cada um só se liberta no encontro consigo e com a sua missão interior.

Sebastião, hoje, o gestor engravatado, hábil nos números e em tratados de gestão, traz dentro de si um homem menino que se sente pequeno ao realizar que os seus horizontes se encurtaram, e um menino homem que vibra de desejo e curiosidade procurando alcançar mundos distantes, quando ainda está longe de conhecer o essencial, a verdadeira dimensão do amor.

Novo apelo à entrada em cena da Rainha Santa, para que opere o milagre de despertar o amor incondicional onde mora o medo e a cegueira. De devolver a dignidade a mulheres, homens, crianças, velhos, enjeitados, famintos e doentes. De espalhar a concórdia e despertar a lucidez, onde mora o alheamento, a ousadia, onde mora o temor e a indignação inerte, silenciosa.

Sebastião, a metáfora de uma humanidade de circo que caminha hesitante sobre arames sem rede, desenvolvida em número, em avanço científico, tecnológico e económico, qual calculadora humana nascida com programas informáticos no sangue, mas de estreita consciência de si e do outro, de débil crescimento espiritual, repetindo geração após geração os mesmos erros, como uma criança desatenta aos seus Mestres.

Uma humanidade imatura como Sebastião, em busca de satisfação do desejo imediato, e ainda em estado primitivo no tocante à evolução de uma inteligência interligada com as emoções, porventura, a zona mais nebulosa que lhe cabe desvendar.

Detentora de mentes impregnadas de conceitos e preconceitos, de visões superficiais, fantasias sexuais comuns, de relações desprovidas de amor.

Aparece, Rainha Santa, atende o chamamento do Pintor e leva Sebastião a confrontar-se com o vazio da sua vida, que é a de todos, embrenhados em desertos onde já não vemos os poços invisíveis, nem chapéus que podem ser uma jibóia a digerir um elefante, esquecidos que andamos de sonhar e criar laços e cativar amigos, porque, como dizia a raposa amiga do Princípezinho, quando queremos um amigo, temos de o cativar.

Desperta-lhe os sentidos, fá-lo olhar com olhos de ver, reaprender o cheiro das árvores, escutar a sinfonia da natureza, redescobrir a sua cidade cheia de luzes.

Desperta-o da sua letargia, para que entenda que sem ganhar dimensão interior, a vida não se cumpre, não se completa, é um edifício sem fundações.

O Pintor aguarda, e nós também, que numa tentativa de reencontro com a vida, Sebastião empreenda uma expedição destemida à descoberta de si e da força vital que lhe devolverá a dignidade, porque não podem, Sebastião e o seu povo, prosseguir vivendo debaixo de medo.

 

O medo, dizia O’Neill, vai ter tudo

Quase tudo

E cada um por seu caminho

Havemos todos de chegar a ratos

Quase todos

A ratos

Sim, a ratos.

(Alexandre O’Neill in Abandono vigiado).

 

 

 

 

Ana Zanatti, julho 2016