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O arrumador de loucuras destinadas à normalidade

Morreram os equilíbrios, as justas medidas, as vias per mezzo, os in medium est virtus, as cabeça-posta-e-rabo, os com-peso-e-medida. As autópsias revelaram que foi por uma overdose de coerência mal temperada. Não se sabe se a tragédia aconteceu há muito ou há instantes nem é improvável que os relatórios das autópsias não estejam tão mortos quanto os seus objectos e pelas mesmas causas. Sabe-se apenas que a modernidade ocidental nasceu mal temperada e que, por isso, privada de equilíbrios, procurou disfarçar essa privação com desequilíbrios que supostamente se neutralizam ou compensam (matança de índios e acumulação infinita de riqueza, poupança de índios e escravização de africanos, exploração ilimitada de recursos e destruição da natureza, trabalho exaustivo e desemprego exaustivo, fome e obesidade, eternidade e falta de tempo, desassossego e ansiolíticos, cansaço acumulado e cremes de beleza, sedentarismo e ginásio, controle remoto e descontrole próximo). Como não se sabe nem quando nem como tudo isto aconteceu e nem sequer se pode confiar nas autópsias, talvez a única solução esclarecedora seja uma overdose que funcione como antídoto, um veneno administrado às cegas para ver se dele sai alguma luz. É este o projecto de Mário Vitória.

A humanidade em Mário Vitória é uma amálgama de estilhaços  humanos, sub-humanos, não-humanos atirados para um aterro caótico onde ninguém se salva mesmo se puder. A turbulência das escalas, o colapso das expectativas, a interrupção das narrativas, a ecologia dos géneros dissonantes, o esventramento da ordem são os instrumentos ao serviço da maestria com que Mário Vitória diz não à tradição que o trouxe até aqui e diz sim a tudo o resto, sem saber se o resto ainda é passado ou já é futuro.  É, por isso, também uma amálgama de ausências que saltam à vista desarmada: Goyas, Dalis, Almadas, Alices-in-the-Wonderland, Bacons, Brechts, Quixotes, Schuitens e mil outras BDs, todos eles desfeitos num gozo dissoluto, o gozo de finalmente serem o que sempre quiseram ser e nunca puderam ser enquanto foram o que foram. Tudo muito para além do só-não-vale-tirar-olhos porque não há sequer cabeças, pelo menos cabeças no lugar de cabeças ou a funcionar como tal.

As obsessões de Mário Vitória são tão sedutoras quanto destrutivas. São o testemunho de que a arte é o único lugar na modernidade ocidental onde os desequilíbrios se equilibram. É preciso ser deshumanamente forte para entrar no mundo de Mário e sair vivo. É preciso ser deshumanamente  fraco para não querer entrar no mundo de Mário por medo de não sair vivo. É preciso ser humanamente humano para não ter nem a opção de entrar (porque sempre se esteve lá) nem a opção de sair (porque não se sai quando não há onde para onde sair). Mas que ninguém ouse esquecer que é estilhaço e aos estilhaços há-de voltar.

Mário é um MC, um mestre de cerimónias que tanto pode ser para rappers como para recepções a embaixadores e outras inutilidades com charme. Arrumador exímio de loucuras, apresenta-as em series tão incessantes que mais parecem normalidades avulsas deambulando pelos centros comerciais do subterrâneo. Arruma as loucuras onde não é permitido pelas autoridades, certo que lhes sobreviverá tal como o mundo sobrevive a todos nós. Só nós é que não sobrevivemos a nós próprios. E isso também o Mário sabe. Daí que entregue à arte a missão gigantesca de lhe permitir escapar a devoração de si próprio enquanto pinta e desenha.

A modernidade ocidental ainda se vai arrepender de ter dado à luz um artista deste calibre.

Boaventura de Sousa Santos, abril 2013