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Cabeça, mãos e homens

Comentários dispersos e paralelos, a partir da pintura de Mário Vitória

1.Nada está separado 

Nada está separado, ou seja: as coisas avançam (flutuam?) de um lado para o outro como se não existisse nem queda nem o estar quietinho. Nada cai porque nenhum elemento deste mundo aceita a existência do solo. O lá em baixo não existe, só há coisas acima de mim ou muito acima de mim (dois outros espaços, portanto). O homem, o acima do homem e o muito acima do homem – eis o que poderá dizer quem só tem o que aí vem porque perdeu por completo a memória.

O verdadeiro solo está sempre acima da cabeça, e isto até pode ser uma nova definição de pátria ou de ideal: o solo acima da cabeça. Mas não somos toupeiras, somos uma espécie humana com tendência para uma utopia que preenche os espaços vazios com materiais concretos; uma utopia de engenharia; uma utopia que usa cálculos exactos, uma utopia numérica e com boa pontaria, por assim dizer. Por isso: precisamos de céu.

2. As cabeças, por exemplo

As cabeças, por exemplo, podem subitamente desaparecer; podemos perfeitamente inaugurar uma casa no sítio onde estava a cabeça de um sujeito que reclamava ou de um outro que dizia sim ou de um outro que dizia não (inaugurar casas no espaço ocupado por alguém que dizia sim – eis um bom projecto). E não se trata de fazer explodir a parte superior do corpo, trata-se de abrir literalmente a cabeça do sujeito, de permitir que a cabeça seja um espaço-porta e espaço-janela, armazém para onde se vê e de onde se vê, para onde se entra e de onde se sai.

3.Expressão

É evidente que um homem sem cabeça fica mais expressivo e tal não é paradoxo. Se tirarmos a cabeça de um homem do seu sítio próprio e mantivermos a energia das mãos que agem no mundo debaixo de um casaco sem cabeça, eis que tudo fica claro: a cabeça é aquilo que está a mais, aquilo que impede que o corpo humano seja um volume mais ou menos homogéneo semelhante a outros animais harmónicos, por assim, dizer, como o búfalo e as vacas, que são compactos e direitos. No fundo, o problema do homem é o pescoço, essa parte que liga e que portanto separa. E com o pescoço fica o homem dividido em 3 partes, pescoço (aquilo que liga), cabeça e resto do corpo, lá em baixo. É evidente, portanto, que um homem sem cabeça fica mais expressivo e tal não é paradoxo.

4. Barco

Há também a importância do barco que avança na água (o conservador), na terra (o esforçado) e no ar (o barco em estado de levitação sonolenta). A importância do barco claro. No fundo, um barco que voa é como um homem sem cabeça ou talvez seja mesmo, esse barco, a cabeça que falta ao homem.

5. Mola

A mola é um instrumento de pequenas dimensões mas que junta e prende; é um instrumento amoroso, portanto.

6. Lúdico

Uma maneira feliz de deformar a tragédia; uma forma de obrigar quem vê a tirar a camada que está por cima do que é trágico. O que é o lúdico?

7. Os homens

Na pintura de Mário Vitória, os homens são puxados lá de cima; uma corda desce e pede ajuda e o homem – que sempre pensou poder ser ajudado pelo céu – percebe que já está tão senhor do seu nariz desenvolvido que agora é o céu que lá em cima pede ajuda. No fundo, o homem já não reza nem vira cabeça para o céu a pedir justificações ou caridade; quando vira a cabeça para o céu é para perguntar, como quem pergunta a um familiar mais infeliz: precisa de ajuda, meu Senhor? Mas nenhum dos lados pede já ajuda pois o desespero está instalado no céu e no solo e ainda acima do céu e abaixo do solo.

fim

Gonçalo M. Tavares, fevereiro 2014