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Sobre a obra de Mário Vitória

O desenho assume-se como meio base deste projecto. Ele é gerador do imaginário que caracteriza as pinturas e gravuras de Mário Vitoria, um imaginário que pertence à ordem do metafísico que se deixa contaminar pelas narrativas infantis e contos populares – na referência constante à tradição, usos e costumes – da sátira politico-social ou mesmo da caricatura. Atingir o mais profundo âmago humano, a sua ontologia, a essência primitiva, naquilo que torna o homem indistinto do ser animal, parece ser o objectivo. A representação de animais domésticos, que ora se exprimem em emoções e gestos humanos, ora na sua condição de bestas sob a dominação humana, o significado dos gestos ou a expressividade dos olhares, levam o observador ao universo da fábula, das metáforas e das alegorias. Nas fábulas, os personagens são geralmente animais que reflectem uma lição moral. Aqui a mensagem tem também um fundo moralista e é sobretudo o testemunho de experiencias auto-referenciais e de uma imagética consequência de uma pesquisa pessoal. A vitória da debilidade sobre a força, da benevolência sobre a esperteza, o eterno confronto entre o bem e o mal, tudo dissimulado por uma subtil hipocrisia violenta, presunção ou mesquinhez, que transformam estas figuras de estilo num profundo drama de ironias. Várias noções são aqui analisadas. O homem, as coisas, os animais são antíteses das suas próprias propriedades. Enganam pela sua aparente ingenuidade. O espaço que ocupam na composição dita uma hierarquia de possibilidades interpretativas e são parte integrante de uma cosmogonia cujos elementos revelam um profundo sincretismo visual. O significado, esse, apenas em parte poderá ser denunciado. Enquanto representação, revelam significados que estão para além do que é aparente. Quer os desenhos-pintura, quer as gravuras, descrevem metanarrativas fruto da sobreposição de diferentes contextos, incidentes e condições, cujo carácter aleatório se revela um lúdico jogo de percepções. Os fragmentos enumerados graficamente representam um mundo real que é ao mesmo tempo repleto de fingimentos. Os vários protagonistas são inseridos na composição, que funciona como uma espécie de proscénio, obedecendo a uma “ordem” meta-narrativa. O bestiário humano espelha simultaneamente complacência, perplexidade, a verdade da realidade e a da ficção. Uma noção de espaço pouco profundo delimitado por um cenário indefinido – onde pessoas, animais e objectos se justapõem, e no qual estabelecem redes simbólicas de relações – define a estrutura base das composições. O facto de não terem sido atribuídos quaisquer títulos a alguns trabalhos vem reforçar a ideia de uma autonomia interpretativa que qualquer nomeação anularia e que a dimensão narrativa das imagens, por si só, potencia. Esta inexistência de linhas que conduzam a uma leitura do enunciado levam o observador, a partir dos fragmentos figurativos, a delinear os contornos dum enredo que pode estar ou não próximo das intenções do artista. No entanto, a perfusão de elementos, aparentemente desconexos e disperso nas composições, todas estruturalmente centrifugas, constitui um importante ponto de referência para a construção de possíveis analogias. É esta tipologia compositiva que rege toda a panóplia de afinidades que os desenhos suscitam. São narrativas onde não domina qualquer sequência linear, pelo contrário, a sensação de que o autor faz permanentes avanços e recuos, conduz-nos do fim para o princípio e deste para o final da história num movimento permanente e nunca consequente. Em sentido figurado, as notas de rodapé, os complementos directos e indirectos fazem parte de um discurso que se pretende plural.

Ana Luísa Barão, abril 2007